terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Cartão de Ponto

          Todo dia quando chegava ao trabalho tinha que bater o cartão de ponto.  Batia também no intervalo de almoço e novamente a saída quando ia para casa.  Depois de seis dias de trabalho, Walter me perguntou “Que dia você vai folgar?”  “Nao sei”, respondi, no meu cartão  não havia nenhum espaço carimbado  com a palavra FOLGA, como dos outros.  “Todo mundo tem direito a uma folga semanal”, me disse Walter,  “Ja que você trabalhou seis dias, amanha deve ser sua folga”.  Otimo, pensei, seria um Domingo, bom para curtir o dia na praia, e assim, no sétimo dia, não fui trabalhar.  Quando cheguei na segunda-feira para trabalhar, meu cartão não se encontrava no quadro.  “Voce não poderá entrar no service” decretou o severo Porteiro de Serviço, “Tera que aguardar a chegada do Chefe de Pessoal”.  Fiquei aguardando e finalmente fui chamada a sala do Chefe de Pessoal.  “Por que você não veio trabalhar ontem” ele perguntou.  “Por que era minha folga, eu já havia trabalhado seis dias e o sétimo seria minha folga”  “Seu cartão estava carimbada FOLGA, por acaso”? “Nao senhor”, respondi, “ mas nenhum dia do mês estava carimbada com FOLGA”  “Se o seu cartão não esta carimbada FOLGA, você não pode folgar.  Você devia ter trazido seu cartão para o Departamento de Pessoal para ser carimbado, antes de folgar.  Isto e uma falta grave.  Desta vez, vou lhe perdoar, mas na próxima vez recebera uma carta de advertencia”, e assim me liberou para trabalhar, mas não sem antes carimbar meu cartão de ponto todos os Domingos do mês com a bela palavra FOLGA.
         O privilegio de folgar somente aos Domingos durou pouco.  Não demorou muito para que o carrasco do Gerente Geral notar o fato, e ai ele chamou o Chefe de Pessoal e perguntou “Porque o Philip só esta folgando aos Domingos”?  “Porque ele e estagiário, e não esta na escala normal de trabalho da cozinha, por isso eu achei que não faria diferenca”  “Errado”, disse o Gerente Geral, “Philip não deve ter qualquer tipo de privilegio em relação aos demais funcionários.  A partir de agora, ele deve folgar durante a semana, e terá apenas uma folga dominical  por mês, exatamente como os demais funcionários.”   E assim foi feito, e a partir dali passei a folgar todas as quintas-feiras, com um folga dominical por mês.  Na semana da folga dominical, perdia a folga de quinta-feira, exatamente como acontecia com os demais funcionários.
           Esse tratamento sem distinção com os níveis mais baixos da hierarquia, dispensado a mim, se manifestava de vários formas.  Primeiro, pelo uniforme, que logo distinguia quem era quem na hierarquia interna do hotel, e da própria cozinha, e depois pela própria remuneração, que no caso de Peão de Cozinha se limitava a um salário mínimo e mais meio ponto na distribuição da taxa de serviço.  Havia também a rígida disciplina, aplicada em casos de faltas, por menores que fossem.  Isto começava pelo exigência de cumprir rigorosamente o horário de trabalho.  Um atraso superior a cinco minutes implicava na suspensão imediata.  O funcionário simplesmente não poderia entrar em service, perdia o dia de trabalho, a folga remunerada, e ainda levava uma carta de advertência.  Faltas injustificadas ao trabalho eram faltas graves, e faltas por doença, só com atestado da SAMDU, precursora na época da atual INSS.  Havia ainda um outro fato.  Naquele tempo, existia no Leme Palace, quatro vestiários masculinos diferentes, que atendiam basicamente aos  diferentes níveis hierárquicos do hotel. Havia o vestiário dos chefes e encarregados, outro para os recepcionistas e maitres, outro para os garcons e mensageiros, e finalmente outro para os serventes e peões de cozinha.  Era o menor, mais acanhado, e mais densamente ocupado vestiário, e era apelido pejorativamente pelos demais funcionários como “A Favela”.  E era la, na “favela”  que meu armário estava localizado.
           Com tudo isso, não demorou muito tempo para meus colegas – subalternas como eu – passaram a me aceitar como um igual.  Embora eu morasse com meus pais e irmãos num apartamento da classe media no Leblon, e meus colegas morava ou em favelas verdadeiras ou em longuinios surburbios cariocas, quando entravamos em service, passamos a ser iguais, sofrendo as mesmas durezas e muitas vezes as mesmas injustiças.  Com isso, passei a estabelecer verdadeiras amizades, e cumplicidades.  Aprendi as diversas “malandragens” que ajudavam a suavizar o rigor da disciplina implacável, e passei a nutrir um saudável desconfiança em relação a todo e qualquer chefia.  Com meus colegas de trabalho, passei a frequentar lugares raramente frequentados na época por jovens da zona sul, como a Praça Maua, Lapa, e a rua Mem de Sá, onde jogávamos  sinuca.  Joguei futebol em Jacarezinho, e frequentei bailes em Mesquita.  Andava nos trens da Central, e frequentava o geral do Maracana.  Sempre fui um flamenguista fanático, e isso também me ajudou muito. Eu era do povo, e me sentia bem.

Um comentário:

  1. Catártico. Aliás, escrever é uma catarse. Lembro do apelido "favela" para o vestiário dos peões, mas acho que era no Rio Palace - ou será no Copa? Não sei mais, ando mesmo velha... Continua, estou à espera do próximo capítulo! Beijim!

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