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segunda-feira, 8 de abril de 2019

O 31 de Março que Eu Vivi.

Já que vejo muitas pessoas fazendo  recordações e dando suas opiniões sobre os eventos de 31 de março de 1964, também me sinto no direito de fazer o mesmo, já que eu também vivenciei esta época e tenho muitas recordações pessoais desse tempo.  Antes, um esclarecimento.  Não obstante ter nascido na Inglaterra e ser detentor de passaporte britânico, sou brasileiro naturalizado, detentor de passaporte brasileiro e título de eleitor, portanto credenciado a emitir opiniões sobre questões políticas brasileiras.

Cheguei no Brasil no final de 1960, logo após a eleição de Jânio Quadros para o cargo de Presidente da República, cargo que ele viria a assumir em 31 de janeiro de 1961.  O Jânio era um figura estranha e excêntrica, tanto na aparência como no comportamento, mas mesmo assim seu repentino renuncio em agosto de 1961 - apenas sete meses após ter assumido a Presidência - pegou o país de surpresa e abriu uma grave crise politica pois nem os militares, nem boa parte da população queria ver o seu vice, João Goulart, um confessado "socialista", que muitos identificaram como "comunista", assumir a presidência.  Também não ajudou o fato que Goulart se encontrar em visita oficial à China comunista de Mao Tsé-Tung no momento da renuncia do Jânio, e havia grupos no Congresso Nacional que se opuserem ao seu regresso ao país.  Goulart era apoiado por seu cunhado Leonel Brizola, Governador do Rio Grande do Sul e parte das Forças Armadas, e foi através de Porto Alegre que Goulart voltou ao país. Por um breve período parecia que o país caminhava para uma guerra civil, mas a crise foi contornada com a introdução do parlamentarismo, com o poder executivo na mão de um primeiro-ministro enquanto Goulart assumiu como Presidente, com poderes bastante reduzidos.  A emenda constitucional que introduziu o parlamentarismo incluía uma clausula prevendo um plebiscito que seria realizado em 1965 para decidir se o parlamentarismo seria continuado no próximo mandato presidencial, ou se reverteria para Presidencialismo.

Na época eu tinha 15 anos de idade e estudava na Escola Americana, que naquele tempo era localizado no final da Avenida General Urquiza no Leblon.  Me lembro bem das orientações que os alunos recebiam para manter um "low-profile" nas suas deslocações entre suas casas e a escola, pois estávamos no auge da guerra fria entre os Estados Unidos e seus aliados de um lado, e a União Soviética do outro lado, e havia um clima anti-americano, pelo menos entre os adeptos do Jango, como João Goulart era conhecido. Me lembro do ano de 1962 como um ano de extrema agitação política e um crescente polarização entre a direita e a esquerda, com greves e manifestações ocorrendo a toda hora.  No meio disso, Goulart conseguiu antecipar o plebiscito sobre o Presidencialismo/Parlamentarismo, previsto para acontecer somente em 1965 para janeiro de 1963.  No plebiscito, os eleitores tinham que escolher entre o Sim (a favor do restabelecimento do Presidencialismo), ou Não (contra).  A campanha a favor do Sim foi maciça com todas os muros e postes da cidade totalmente tomadas com a propaganda eleitoral.  No fim, o voto pelo Sim obteve mais de 80% dos votos, e o país voltou a ser regido pelo Presidencialismo, com João Goulart assumindo integralmente os poderes de um Presidente.

Apesar disso, os greves e a agitação social não cessou.  Como Goulart não tinha um base de apoio no Congresso, ele recorria a uma postura populista que mantinha os sindicatos e as classes populares em permanente mobilização para pressionar o Congresso para aprovar as reformas que pretendia introduzir.  Com isso ele abandonou o programa de austeridade econômico que tinha sido introduzido com o objetivo de frear a inflação.  Medidas populares como o aumento do salário mínimo e a introdução do 13º salário contribuírem para aumentar ainda mais a inflação, ao mesmo tempo a economia crescia cada vez menos.  Esse é o quadro que me lembro dos anos de 1962 e 1963.  A tudo isso eu assistia de camarote, mas não apenas como um típico morador da zona sul carioca.  Por sorte das circunstâncias  a minha visão da realidade brasileira foi um pouco mais abrangente da maioria. Isso porque um dos meus melhores amigos na Escola Americana era um menino brasileiro, chamado Joaquim.  Nós dois tínhamos em comum um amor por futebol e fazíamos parte do time de futebol de salão da escola.  Aliás, foi o primeiro time de futebol de salão a ser formado pela Escola Americana.  Faziam parte, além de Joaquim e eu, um alemão, um húngaro, um chinês, um americano, e mais dois ou três brasileiros.  Era um timaço, ........mas isso já é outra história!

Voltando ao meu amigo Joaquim.  Ele havia nascido num família pobre na baixada fluminense, e quando pequeno ganhava alguns trocados vendendo amendoim nos trens da Central, quando acabou sendo "adotado" por um casal de americanos residentes no Rio.  Os americanos levaram Joaquim para estudar nos Estados Unidos por um período de quatro anos, após o qual regressaram ao Brasil, e Joaquim foi estudar na Escola Americana.  Ocorre que Joaquim, embora morasse com os "pais" americanos num confortável apartamento na Urca, também mantinha um contato estreita com sua mãe biológica, que morava numa casa muito simples em Mesquita, que naquele tempo era um sub-distrito do município de Nova Iguaçu.  Como eu e Joaquim nos tornamos grandes amigos, fui muitas vezes à Mesquita, (andando sempre nos trens da Central)  onde passei várias finais de semana, visitando os familiares e amigos do Joaquim.  Era muito divertido pois normalmente jogávamos futebol pela manhã e depois bebíamos cerveja com os garotos, e a noite frequentavas alguma festa onde fazíamos algum sucesso com as garotas locais, eu, porque falava português com sotaque de gringo, e sabia traduzir para português as letras dos sucessos americanos do momento, e Joaquim, até porque já era um especie de celebridade em Mesquita.  Além de visitar Mesquita, as vezes íamos para Volta Redonda, onde o irmão do Joaquim trabalhava na siderurgia nacional.  O contraste entre Mesquita e Volta Redonda era enorme.  Enquanto Mesquita era um local muito pobre, sem ruas asfaltadas, e casas muito simples, Volta Redonda mais parecia uma cidade americana do interior, com boas casas, e ruas asfaltadas e arborizadas.  Parecia ser uma cidade totalmente planejada.

Para mim, a experiencia de poder conviver, mesmo por pouco tempo, com realidades muito distantes da realidade da zona sul carioca foi de grande valia, e as recordações que tenho dos anos de 1962 e 1963  misturam experiencias vividas tanto na zona sul carioca como na baixada fluminense e Volta Redondo, o que  permitiu uma ampliação da minha visão da realidade brasileira.  Essa vivencia brasileira foi interrompida em agosto de 1963, quando voltei para Inglaterra pois meus pais queriam que eu completasse meus estudos secundários no sistema britânico, e só retornei ao Brasil em outubro de 1964.  Com isso, perdi completamente os incidentes finais que resultaram nos acontecimentos de 31 de março de 1964, e a deposição do Presidente João Goulart.  Mesmo assim, não foi com nenhuma surpresa que eu li nos jornais da Inglaterra as notícias da deposição do Presidente.  Para quem havia acompanhado de perto os acontecimentos a partir da renuncia do Jânio em 1961 era quase um desfecho inevitável.  O crescimento do PIB em 1963 havia despencado para apenas 0,6%, enquanto a inflação atingiu 79,9%. O quadro abaixo demonstra a evolução do crescimento do PIB e da inflação desde 1960, e deixa claro o colapso da economia durante o período.

                                Ano                      PIB                 Inflação
                               1960                     +9,4%               30,4%
                               1961                     +8,6%               47,8%
                               1962                     +6,6%               51,6%
                               1963                     +0,6%               79,9%

As tentativas de reforma cada vez mais radicais da dupla Goulart/Brizola, expostas de uma forma clara no comício da Central no Rio de Janeiro em 13 de março que incluía o incentivo ao rompimento da hierarquia dentro das Forças Armadas, convenceu boa parte da classe média que o país estava à beira de um golpe que tinha como objetivo a instalação de uma revolução socialista no país.  Esta ameaça foi respondida por um serie de demonstrações chamadas de Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que pediam o afastamento de Goulart.  A primeira dessas marchas foi realizada em São Paulo em 19 de março, mas ao todo foram realizadas 49 marchas em todo o Brasil, se estendendo até o mês de junho.  Após a derrubada do Goulart em 31/03, as marchas tomaram o nome de Marcha da Vitória.  A marcha realizada no Rio de Janeiro em 2 de abril reuniu mais de um milhão de pessoas.

O Brasil que encontrei em outubro de 1964 parecia um outro país comparado com aquele eu havia deixado apenas 15 meses antes.  As ruas estavam bem mais calmas e não havia mais a agitação política que antes existia, e pelo menos na zona sul carioca, havia um clima de otimismo no futuro do país, já que a ameaça socialista havia sido afastada.  Ao refletir sobre  os eventos que ocorrerem 55 anos atrás, não posso deixar de registrar o fato que a derrubada do Goulart foi maciçamente apoiada por grande parte da população brasileira, a começar pela classe média, pelos empresários, pela Igreja Católica, pelos políticos, pela imprensa, e pelas Forças Armadas.  É verdade, pelas elites, como muitos afirmam.  Mas também deve se registrar que a derrubada do Goulart não encontrou nenhuma grande resistência popular.  A resistência que houve foi esporádica e eventual e em nenhum momento envolveu as classes populares.  Menos de um ano após a derrubada de Goulart, eu comecei a minha jornada em hotelaria quando entrei em Hotéis Othon como "trainee". A primeira etapa do programa de "trainee" consistia em passar dois anos num hotel (o Leme Palace) trabalhando em praticamente todas as funções existentes, começando pela cozinha, e estando sujeito as mesmas normas de qualquer outro empregado, sem nenhuma regalia ou tratamento diferenciado. A principal vantagem dessa dura experiência foi que me deu uma visão clara do negócio, e do mundo, visto através da ótica dos funcionários subalternos, o que foi de grande valia mais tarde para o desenvolvimento da minha carreira. Mas o eu quero enfatizar aqui é que em nenhum momento senti, por parte dos trabalhadores mais humildes, qualquer sentimento de insatisfação pelo final do governo Goulart.  Pelo contrário, a grande maioria manifestava satisfação pelo fim da instabilidade vivida nos anos anteriores.

Para concluir, quero lembrar que meus comentários aqui expostos são baseados em recordações pessoais de quem viveu esta época.  Não sou dono da verdade e politicamente não sou da esquerda, e também não sou da direita. Já votei no PT e já votei no PSDB.  Procuro votar no que eu acho melhor para o país naquele momento.  Para mim, o movimento de 31 de março de 1964 foi uma consequência direta da renuncia do Jânio em agosto de 1961, e encerrou uma  etapa de grande agitação politica, ideológica, e social, que teria terminada de forma muito pior se fosse permitido continuar. Neste sentido, eu me coloco ao lado daqueles que considerem o movimento de 31 de março como um contra-golpe ao golpe pretendido por Goulart e seus seguidores. Pode se argumentar que o processo eleitoral existente em 1960, que permitiu uma eleição separada para vice-Presidente e consequentemente a formação de uma chapa totalmente antagônica foi o responsável pelos eventos que se sucederem, mas a renúncia do Jânio foi o estopim que deu inicio ao processo.  Na minha opinião, a tentativa de culpar, e até demonizar as Forças Armadas pelos eventos de 31 de março é equivocada e injusta.  O mínimo que se deve reconhecer é que o movimento que levou à deposição do Goulart em 31 de março foi um movimento cívico/clérigo/politico/militar, além de ser apoiado por grande parte da imprensa brasileira, e diante das opções existentes na época, benéfico para o futuro da nação.

O que veio a acontecer depois de 31 de março,  principalmente após a decretação do AI-5 em dezembro de 1968 é outra história, e deve ser tratada como tal.  A intenção inicial dos perpetradores do movimento de 31 de março era de realizar eleições presidenciais em 1965.  Isso acabou não acontecendo.  Os excelentes livros do Elio Gaspari - leitura obrigatória para quem entender melhor a história recente do Brasil - conta em detalhes o desenrolar de eventos que resultaram no decreto do AI-5, assim como os eventos subsequentes.  Mas, como já afirmei aqui, isto é uma história para um outro dia. Minha intenção nesse relato é meramente recordar as minhas experiências relacionadas ao movimento de 31 de março de 1964.