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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Historias de Uma Carreira Hoteleira -- Capitulo 11 -- Vivendo e Aprendendo.

         Poucos dias depois esse incidente,  recebi um telefonema do Escritório Central, me comunicando que o meu estagio havia terminado e que a partir daquela data eu iria fazer parte da equipe de Auditoria Operacional, e que  ficaria lotado no Escritório Central no centro da cidade.  A equipe de Auditoria Operacional era chefiado por um jovem dinâmico, e mais três assistentes, e o trabalho consistia em percorrer os sete hotéis da cadeia no Rio de Janeiro , fazendo checagens nos diversos processos de controle, conforme uma programação pré-determinada.  Era um trabalho bem interessante e variado, e a oportunidade de fazer os checagens nos sete hotéis nos obrigava a conhecer as peculiaridades de cada hotel, e cada operação.  Como eu tinha acabado de estagiar em todos as áreas do hotel, eu conhecia bem as rotinas, e estava bem preparado para executar as tarefas. Alguns dos serviços, como a checagem do balancete diário, eram rotineiros, mas outros eram eventuais e realizados de surpresa, e nem sempre as nossas presenças foram  apreciados pelos gerentes dos hotéis, e chefes de escritório.  Certo dia, fui designado para fazer uma checagem da contas a receber do Hotel Olinda.  Naquele tempo, todos os hotéis ficavam responsaveis pelas suas cobranças na praça do Rio de Janeiro, e somente cobranças nos demais praças ou do exterior eram centralizados no Escritório Central.  Era um serviço rotineiro, que eu já havia feito por várias vezes.  Neste dia, entretanto, eu não conseguia fechar as contas.  Por mais que cruzava as informacoes disponíveis, as contas não fechava.  De vez em quando o gerente do hotel passava na minha mesa e perguntava se estava tudo bem ou se eu queria alguma ajuda.  Finalmente, decidi ligar para meu Chefe, e disse-lhe “Olha, fiz todos os procedimentos corretamente, fiz todos os cruzamentos, mas não estou conseguindo fechar a conta, tem alguma coisa errada, mas não estou sabendo o que e.”  O Chefe me fez duas ou três perguntas, tipo, você já verificou isso, você já verificou aquilo, e quando respondi tudo no afirmativo, me disse “Nao sai dai, vou chegar ja”.  Ate então não havia me passada pela cabeça a ideia que algo serio estava errado, eu achava que o problema era comigo, que não estava sabendo concluir o trabalho, mas o tom de voz do Chefe já indicava que ele pensava diferente.  Em menos de 15 minutos ele chegou no hotel e foi logo revisando meu trabalho. Fez mais alguns checagens, e depois virou para mim, e disse “Tem alguma coisa seriamente errado. Vou chamar o Diretor da empresa.  Você esta liberado, volte para o escritório e ajude seus colegas no trabalho de revisão que eles estão fazendo”  No no fim do dia tomei conhecimento que o gerente do hotel havia sido demitido por justa causa.  Aparentemente, ele estava endividado e estava utilizando os frutos da cobrança para reforçar seu caixa  pessoal, ate receber seu salario no final do mês.  Não fui parabenizado pelo meu trabalho, e não senti nenhuma satisfação pelo destino do gerente, mas senti uma grande satisfação em saber que havia cumprido com meu dever.
         Boa parte do trabalho dos auditores operacionais era desenvolvido dentro dos hotéis, mas éramos “lotados” no escritório central, o que nos obrigava a bater o cartão de ponto as 8.30hrs no escritório central no centro da cidade, para depois ir ate os hotéis em Copacabana.  Para quem morava em Leblon, era um sacrifício ter que se deslocar ate o centro só para bater o cartão de ponto e depois voltar para Copacabana, mas não tinha jeito.  A disciplina era severa, e a regra tinha que ser cumprida.  Também os auditores não desfrutavam de qualquer mordomia, como ter direito a “consumo interno” nos hotéis que auditavam,e o almoço normalmente era um sanduiche comprado no “Gordon`s” (hoje McDonald`s) na rua Hilário Gouveia , que era mais ou menos meio caminho ente o Hotel Califórnia, onde normalmente comecavamos o trabalho, e o Leme Palace, onde terminavos antes de seguir para o Hotel Aeroporto na rua Beira-Mar, próxima ao aeroporto Santos Dumont,  para depois finalizar o dia de volta no escritório central.  Todo este trajeto era feito de terno e gravata, traje obrigatório na época.
      Um dos piores  serviços rotineiros feitos pelos auditores operacionais era a inutilizacao de roupa, que era feito a cada três ou quatro meses.  O trabalho consistia em passar nas rouparias dos hotéis e inspeccionar todas as pecas de roupa que havia sido descartadas por não mais atender ao padrão de qualidade exigida, ou por estava desgastada, manchada, ou rasgada.  O trabalho da auditoria consistia em decidir se o dano fora causada por mau uso por parte da lavandeira externa que atendia os hotéis, ou se era desgaste normal de uso.  Caso o dano era causado pela Lavandeira, a roupa era separada e entregue a Lavandeira, que indenizava o hotel pela perda.  A roupa descartada por desgaste era então baixada do estoque da lavandeira e uma requisição feita para repor a quantidade de roupa descartada.  As pecas descartadas tinham que ser totalmente inutilizadas para evitar que pudessem retornar ao estoque.  Isso implicava em ter que rasgar cada peca, e aplicar um carimbo com os dizeres INUTILIZADO em cada peca rasgada.  Era um trabalho bem chato, e cansativo, e, dependendo da localização  da rouparia, feito num ambiente de um calor sufocante.  Me lembro um dia executando este serviço no Hotel Aeroporto, em pleno mês de Fevereiro.  A rouparia no Hotel Aeroporto ficava no ultimo andar do hotel, debaixo de um telhado de amianto.  Era de um calor infernal.  Começamos (éramos dois auditores ) o serviço as 14hrs e duas horas depois o gerente do hotel passou por la, viu como estávamos  suados, e perguntou “Voces gostariam de tomar um suco de laranja”?  Balancamos nossas cabeças afirmativamente, um suco de laranja naquele momento seria maravilhoso, e logo foi nos servido um suco delicioso.  No dia seguinte, estavamos fazendo o mesmo serviço num outro hotel quando recebemos um telefonema do Diretor, que perguntou “Voces tomaram dois sucos de laranjas no Hotel Aeroporto ontem”, “Sim”, respondemos, “Voces não sabem que não tem direito a consumo interno”? “Ja mandei o hotel emitir uma nota fiscal desse consumo, e no fim do expediente vocês passam no hotel e pagam a conta, e que isso não se repita mais”, gritou o Diretor.  Quando chegávamos no Hotel Aeroporto, o gerente nos esperava na porta.  Ele já havia pago a nota fiscal dos dois sucos, e não aceitou de maneira alguma que o reembolsamos, e ainda pediu mil desculpas pelo constrangimento que, inadvertidamente, havia nos causado.
         Visto pelos padrões de hoje, este tipo de disciplina e quase incompreensivel, mas era a cultura reinante na época, e isso permeava toda a organização, ate os escalões superiores.  Me lembro de um fato ocorrido por volta dessa época no Hotel Olinda, que exemplifica o que estou dizendo.  Havia chegado há pouco tempo no grupo um Alemão, que exercia a função de gerente tornante.  Isto e, ele substituía os gerentes dos diversos hotéis quando estes tiravam seus períodos de ferias.  Logo, ele foi designado para substituir o gerente do Hotel Olinda, nas suas ferias.  No primeiro dia no cargo resolveu fazer uma inspecção nos apartamentos e encontrou um banheiro com a pia rachada.  Chamou o encarregado da manutenção, um veterano com mais de 30 anos de casa, e ordenou “Substitui esta pia, ela não pode permanecer desta forma”.  No dia seguinte o gerente voltou ao apartamento e verificou que nada havia sido feito.  Chamou novamente o Encarregado da Manutenção , e, já irritado, ordenou novamente que a pia fosse substituída.  No terceiro dia, uma nova inspecção, e novamente nada havia sido feito, só que desta vez, o gerente substiituto, já furioso, pegou a marreta da mão do Encarregado e espatifou a pia em pedaços, e virando para o Encarregado disse, “Pronto, agora você quer me fazer o favor de colocar uma nova pia no lugar” “Nao posso, Senhor, não temos outra pia em estoque.  O Senhor tem que fazer um pedido de compra para o Escritório Central"  O Encarregado tinha razão, era assim que o sistema funcionava.    Consequentemente, naquele dia, o apartamento não podia ser alugado, pois ficou em manutenção.  No dia seguinte o Diretor, observando que entre todos os hotéis do grupo, apenas o Hotel Olinda havia passado a noite com um apartamento não alugado, ligou para saber a razão.  Ao se inteirar dos fatos, não teve duvidas, ordenou que o gerente pagasse  não apenas o custo da pia que ele havia quebrada,  mas que também pagasse a diária do apartamento que ficou em manutenção.  Uma lição e tanto para o recem-chegado.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Historias de uma Carreira Hoteleira - Capitulo 10 - O Teste Vocacional

        A ultima fase dessa parte do estagio foi passado no Departamento de Pessoal, onde aprendi todos os procedimentos necessários para as admissões de demissões de funcionários, controles de frequência, de ferias, e toda a burocracia necessária para a confecção da folha de pagamento.  Passei a tomar conhecimento mais detalhada da CLT e acompanhar reclamacoes eventuais na justiça de trabalho.  Fora a parte burocrática, uma outra parte importante do DP era a comunicação com os funcionários.  Naquele tempo, a disciplina era mais rígida, e a filosofia predominante era de “manda quem pode, obedeça quem juizo”.  Consequentemente os funcionários era advertidos, suspensos, ou ate demitidos por justa causa, por falhas mínimas.  Ser chamado ao DP, era quase sempre uma ma noticia, e consequentemente poucos vezes os funcionários procurava voluntariamente o DP para esclarecer qualquer duvida.  Comigo, entretanto, foi uma experiência diferente, porque a maioria de funcionários me conheciam bem e me considerava seus amigos. Consequentemente, muitos me procuravam para resolver seus problemas, e a minha passagem por este setor foi bem produtivo, como o próprio Chefe do setor reconheceu.
      Embora eu ainda era um estagiário, na medida que aumentava meus conhecimentos das diversas tarefas do setor o Chefe do Escritório passou a me considerar um espécie de coringa, apto a cobrir eventuais faltas de ouros funcionários, como muitas vezes acontecia.  Consequentemente, varias vezes minha programa de estagio foi alterado ou suspenso, para cobrir estas emergências.  Embora isso acabava atrasando o fim do estagio, eu não me importava muito pois sempre aprendia alguma coisa nova e era também gratificante sentir-se útil.   Um dia, entretanto, esta pratica quase acabou com a minha carreira.  Era um sábado (a área adminstrativo trabalhava sábados ate meio-dia), e o Chefe me chamou e disse “Tivemos que demitir um caixa e você terá que pegar no caixa amanha as 7 horas”  “Sinto muito, mas amanha não posso” respondi, “amanha e minha folga, e tenho um compromisso muito importante que nao pode ser adiado.  Ja me programei todo, e amanha nao vou poder trabalhar”  “Se não vier trabalhar amanha, na segunda-feira será suspenso” sentenciou o Chefe, “Entao pode preparar a carta de suspensão desde já", eu retrucei, "pois amanha, com certeza, não virei trabalhar”, eu disse, e fui embora, e, de fato, no dia seguinte não fui trabalhar.  Quando cheguei na segunda-feira senti um clima pesado no escritório, pois  O Chefe não me cumprmentou, e ate o Chefe de Pessoal procurava me evitar. Não tinha sido ainda suspenso, mas estava claro que algo iria acontecer.  Pensei comigo mesmo, “vou ser demitido”.  No fim da tarde fui chamado ao escritório do Gerente Geral, um homem frio e distante, e com quem, ao longo do estagio, eu nunca tinha recebido qualquer palavra de elogio ou incentivo.  Era a primeira vez que eu havia entrado no seu escritório, e ele não fez nenhum menção para eu sentar, me deixando de pé na sua frente, e sem qualquer preâmbulo, foi direto ao assunto  “Voce deve fazer um teste vocacional, para saber para que você serve na vida, pois, para a hotelaria, com certeza, não e.  Na hotelaria e preciso ter espírito de colaboração e você demonstrou que não possui esta qualidade, pois se estivesse você teria comparecido ao trabalho ontem, conforme o Chefe do Escitorio solicitou,”, e continuou “Ouco falar que a Fundação Getúlio Vargas conduz esse tipo de teste, e sugiro que você vai ate la e se informa”  Tentei argumentar que eu achava que havia demonstrada colaboração e boa vontade em dezenas de ocasiões anteriores, tanto e que o estagio já estava dois meses atrasado em relação ao tempo previsto, mas o gerente não quis saber, e terminou a conversa dizendo, "...bem, seu tempo de estagio conosco já esta concluído.  Vou avisar ao Escritório Central e cabe a eles  determinar seus próximos passos, mas segue meu conselho e faca um teste vocacional"   Era uma péssimo final de estagio, e eu sentia muita raiva, pois eu sabia que a opinao do gerente era muito injusta.
     Felizmente,não foi preciso fazer o teste vocacional, pois no dia seguinte recebi um telefonema do Escritório Central me informando que eu iria integrar a equipe de Auditoria Operacional,  e ficaria lotado no Escritório Central.  Não seria mais estagiário,  mas teria que frequentar um curso noturno de Administração de Empresas, durante 12 meses, custeado pela  empresa.  Uma nova etapa na minha carreira estava começando!
      Em Tempo:  Por uma das ironias da vida, vinte anos mais tarde, quando eu ja era Diretor do Rio Palace,  esse mesmo gerente me procurou solicitando um emprego.  Nao hesitei em contratar-lo, pois era um tecnico competente, mas, e claro, nunca falamos sobre o tal teste vocacional!

domingo, 13 de fevereiro de 2011

"Stranger`s in the Night"

         Os próximos cinco meses foram passados no escritório do hotel, ou na Controladoria, como e conhecido hoje.  Comecei no setor de custos, aprendendo o controle do custo de alimentos e bebidas, que e uma função crucial.  O serviço consistia em cruzar as "comandas" da cozinha com as notas fiscais emitidas, e depois checar as requisicoes ao almoxarifado.  Alem disso, fazia um inventario diário dos alimentos em estoque nos setores, para no fim de tudo apurar o custo diário.  Era um trabalho exaustivo, mas interessante, pois o objetivo era sempre de alcançar um custo menor.  A maioria dos "fiscais" que executavam esse trabalho eram mal vistos nas áreas operacionais, mas no meu caso, como eu já tinha passado pelas áreas operacionais e era amigo de muitos, o meu trabalho era facilitado.  Eu chegava explicando para meus ex-colegas, "olha, agora eu sou um fiscal, e meu trabalho e controlar vocês.  Conheço os macetes e as malandragens e não vou da mole para vocês.  Abram os olhos"  A mensagem foi bem recebido e a grande maioria cooperavam comigo, tanto e que conseguimos baixar o custo de alimentos sem precisar entregar algum colega para a gerência.  Outro serviço que aprendi bem foi de caixa de restaurante, quando todo o serviço era feito manualmente pois não existia nem maquina de calcular para somar as contas.  Tinha que trabalhar com rapidez e muita destreza, e não podia cometer erros, mas o serviço bem feito evitava de se criasse gargalos no andamento do serviço.  De Caixa de Restaurante fui para Correntista, função que não existe mais mas que e parecido com o serviço de caixa de recepção. Os correntistas trabalhavam numa pequeno cubículo, atrás da Recepção, e eram responsáveis pelos lançamentos dos débitos nas contas dos hospedes.  Trabalhava numa maquina "Burroughs", que antecedeu o mais conhecido NCR42, este também de distante memoria, ambos totalmente estranhos para as novas geracoes.  O trabalho era burocrático, e como trabalhavam sozinho num pequeno cubiclo, tambem solitário.  Embora eu era um estagiário, na pratica o Chefe de Escritório me usava como um coringa, para tapar qualquer buraco que existia na escala, e consequentemente as vezes eu passava muito mais tempo que previsto em certos setores.  Foi o caso de Correntista, onde eu era usado como tornante de folgas, uma vaga difícil de ser preenchida, por causa dos horários difíceis.  Na segunda e terça-feiras trabalhavam das 8 as 17hrs; nas quartas e quintas-feiras de 15 as 24 hrs, na sexta-feira trabalhavam das 23 hrs ate 8 hrs da manha de sábado, no sábado folgava, o que significava que boa parte da folga era passado dormindo pois tinha passado a noite toda acordada, e no domingo trabalhava em um dos horários anteriormente citados, dependendo de quem folgava naquele domingo.  Era um horário bastante anti-social, e por isso difícil de ser preenchida, mas havia algumas compensacoe.  Uma delas e que o cubículo dos correntistas era vizinha do Boite Balaio, arrendado pelo hotel para o famoso Sacha , portanto toda sexta-feira meu trabalho era embalado pela musica vindo da boate.  O Sacha tocava piano, sempre iniciando com a musica "Manhattan", mas como já estávamos em 1966, a musica mecânica também fazia parte do espectáculo, com o filho do Sacha no papel de DJ.  Este começava invariavelmente tocando Frank Sinatra cantando "Stranger`s in the Night", tanto e que ate hoje quando ouço  esta musica  minhas lembranças voltam aquele tempo.
      Um episódio vivido neste tempo me valeu uma suspensão  e quase demissão.  E que um hospede habitual do hotel naquele tempo era o cantor Roberto Carlos, que chegava toda quinta-feira para apresentar seu show "Jovem Guarda" no TV Rio, sempre as sextas-feiras para depois deixar o hotel sábado pela manha.  O Roberto estava no auge do seu sucesso e todos os sábados juntava centenas de meninas na porta do hotel avidas para obter um autografo do astro, sem sucesso.  Foi ai que tive a ideia de distribuir as dezenas de notas de despesas arquivadas comigo,  todas com a assinatura do Roberto  -  e que iriam para a lata do lixo pois não tinham mais valor para o hotel  -  entre as fãs.  Cheguei na rua  com um punhado de notas na mão e sacudindo-as no ar gritei "Quem quer uma assinatura de Roberto Carlos?",   sem imaginar a histeria que minha pergunta iria provocar.  Na confusão que sucedeu, fui obrigado a jogar as notas no ar e recuar rapidamente de volta para o hotel.  Lamentavelmente meu gesto foi relatado para a gerência, que não viu graça alguma, o que acabou resultando numa seria advertência e suspensão por três dias.  Não foi a primeira, e nem seria a ultima vez, que fui suspenso.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Paraíso

       Os seis meses seguintes, foram os mais lucrativos de todo o estagio.  Não necessariamente pelo que aprendi, mas pelo que ganhei em dinheiro.  Isso porque o programa de estagio consistia em passar três meses no Concierge, e três meses na Recepção do hotel.  Diferente de hoje, só trabalhava homens nestes setores, a maioria deles de origem europeu, e com muitos anos de casa.  Era comum os recepcionistas falaram fluentemente cinco ou seis idiomas. Eram verdadeiros mestres na arte de hospitalidade, e ganhavam, frequentemente, pequenas fortunas.  No caso dos Concierges, os rendimentos vinham das comissões recebidos por intermediar os serviços externos requisitados pelos hospedes.  O mais importante desses eram os serviços de telegrama.  Neste tempo, o serviço telefónico era caótico, e uma ligação interurbana, ou internacional, quase impossível de conseguir.  Consequentemente, todo mundo se comunicava através de envio de telegramas, e havia varias empresas oferecendo este serviço.  Quando um hospede queria enviar um telegrama, ele preenchia o texto desejado num formulário apropriado e entregava na Concierge. O Concierge então ligava para o prestador do serviço que mandava uma estafeta de bicicleta ao hotel apanhar a mensagem.  Assim que a mensagem fosse enviada, a prestadora de serviço ligava para o hotel e informava o Concierge do custo do telegrama.  Este valor era colocado na Conta de Portaria de hospede, para posterior cobrança na saída do hospede, acrescido, naturalmente, de uma “taxa de servico” de 10%.  Alem dessa taxa, o Concierge ainda recebia, há cada 15 dias, mais 10% de comissão sobre o valor de todas os telegramas enviados.  Outra fonte grande de renda eram as comissões recebidas das empresas que promoviam excursões  para os pontos turísticos da cidade, como Corcovado, Pão de Acucar, Jardim Botânico, Rio by Night, etc. cujas comissões variavam de 10 a 30%.  E se não bastasse isso, ainda havia comissões recebidos da joalherias da cidade!
       No caso dos Recepcionistas, os ganhos eram de outra natureza, eram frutos de operação de cambio, na época altamente lucrativo. Embora se tratava de uma atividade ilegal, era tolerada, tanto pela direcao do hotel, como pelos autoridades, já que tratava de uma realidade difícil de ser combatida.  Como os recepconistas atuavam também como os caixas da recepção, eram eles que cobravam as contas dos hospedes.  Na época, não havia cartões de credito, e as contas dos hospedes, quando não faturados para alguma empresa ou agência de viagens, eram pagas em espécie.  No caso dos estrangeiros, que eram maioria entre os hospedes, as contas eram normalmente pagas em "travellers chegues" em dólares, utilizando o cambio "oficial" para calcular quantos dólares eram precisos para saldar a conta.  Esses dólares eram depois negociados com cambistas que operavam no mercado de cambio gerando um lucro de aproximadamente 20% para o recepcionista.  No caixa oficial do hotel, só se lançava o valor recebido em moeda local (era Cruzeiro na época), portanto o hotel ignorava que a operação de cambio havia existida.    Alem do pagamento das contas propriamente ditas, os hospedes  também recorriam a Recepção para trocar dólares para suportar seus outros gastos na cidade.  Em cada operação de cambio, o lucro do recepcionista se aproximava a 20%.  Com este quadro, não e surpresa saber que era raro o recepcionista que não tinha quatro ou cinco apartamentos alugados em Copacabana, alem de outros bens.  O “turnover” no setor era praticamente zero.  Os recepcionistas do hotel eram muito invejados pelos demais funcionários do hotel, principalmente por aqueles que trabalhavam no escritório, devido aos altos ganhos que auferiam.  Por isso, sempre que havia alguma discrepancia numa conta, ou se um hospede saísse sem pagar, a conta era enviada para a recepção que, sabiamente,  pagava imediatamente, sem reclamar.     
           De qualquer forma, meu papel nesta área era de aprender a fazer o serviço, e tive a sorte de aprender com excelentes profissionais.  Inicialmente, como eu era um estagiário, eu não participavam no rateio dos lucros diários que eram apurados no fim de cada expediente, mas depois de algum tempo, e na medida que eu aprendia o serviço, passei a receber diariamente uma quantia que era estabelecida pelo Chefe da Recepção.   A partir deste momento, a minha vida passou por uma transformação radical.  Passei a andar mais de táxi, de que de ónibus, e andava com a carteira cheia de dinheiro. Comecei a frequentar todos os bons restaurantes da cidade – Bife de Ouro, Bec Fin, Nino`s, Berro d`Agua, entre outros, e ainda fiquei quatro meses sem passar no banco para receber meu salário oficial.  Para completar minha felicidade, em agosto eu tinha juntado dinheiro suficiente para comprar meu primeiro carro, uma fusca `63, adquirido com pagamento a vista.  Alem de ganhar bastante dinheiro, eu ainda gostava do serviço pois todo dia tinha alguma novidade, como e comum nas recepcoes dos grandes hotéis, mas infelizmente, esta parte do estagio já estava acabando. Eu ainda estava com 20 anos de idade, mas já tinha passado pelas duas grandes áreas operacionais do hotel, mas ainda faltava muita coisa.  Agora o estagio passava para a área administrativo, bem menos glamurosa, sem contacto com os hospedes, e sem gorjetas.  A “Boa Vida” tinha acabada!

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O Ascensorista

Terminado o estagio na Governanca passei para a parte mais agradável e glamuroso de todo o estagio que era o "Front Office".  Comecei numa funcao que nem existe mais, que era ascensorista.  Naquele tempo os elevadores não eram automáticos, mas operado através de uma manivela, como ainda pode ser observado em alguns prédios antigos  no centro da cidade.  Era um trabalho simples, mas agradável, pois tinha o contacto direto com os hospedes, que sempre tinham perguntas a fazer.  Alem disso só trabalhava seis horas por dia, e embora tinha que ficar de pé quando tinha algum hospede dentro do elevador, ou quando estava parado no andar térreo, nas demais situacoes podia sentar no banquinho e descansar um pouco.  Depois da dureza da Governanca, parecia que eu estava de ferias.  Naquele tempo (1966), havia um mercado negro de cigarros americanos, e o Chefe dos ascensoristas atuava neste mercado.  Ele mantinha um estoque de cigarros escondidos em buracos existentes entre os andares, que só podiam ser acessados parando o elevador entre os andares e abrindo a porta.  Todos os ascensoristas aprendiam a fazer esta manobra  -que só podia ser feito quando não havia nenhum hospede no elevador - pois todos tinham participação nos lucros dessa operação.  Como só fiquei 15 dias nesse setor, não sei avaliar quanto essa operação rendia para cada um, mas pela inexistência de "turnover" no setor imagino que não foi pouco.
Os próximos três  meses trabalhei como Mensageiro, que foi um trabalho variado e interessante, pois fazia um pouco de tudo.  A principal atividade era de fazer os "check-ins" e "check-outs", levando e buscando as malas dos hospedes, mas também fazia serviços de manobrista, e ainda serviços externos de "office-boy" sempre que a gerência necessitava.  O turno da manha trabalhava das 8 as 12 horas, e depois das 16 as 20 hrs, enquanto o turno da tarde trabalhava das 12 as 16 hrs, e depois das 20 as 24 hrs.  Ainda havia o turno da madrugada que trabalhava de meia-noite ate as 8hrs da manha.  Todo o pessoal do "Front-office" trabalhava neste regime.  Não havia refeitório no hotel e as pessoas iam para casa almoçar ou jantar, para depois retornar ao trabalho, mas pelo menos não existia engarrafamentos de transito.
Trabalhava 4 mensageiros em cada turno, e havia um rodizio de posicoes de maneira que sempre um mensageiro era "da vez", esperando a próxima tarefa.  Todos torciam que o trabalho "da vez" fosse um check-in", pois assim a gorjeta era certa, e quando apontava um táxi vermelho do Transcopass (a única cooperativa de táxi do aeroporto existente na época) na entrada a alegria era grande, pois sabíamos que era um "check-in".  Em contra-partida, a ordem de comparecer na gerência para atender algum pedido era recebido com tristeza, mas não se podia reclamar, pois a disciplina era rígida e os concierges (que chefiava os mensageiros) não admitiam contestacoes.
Entre as atribuicoes dos mensageiros, era de servir de manobristas.  Isto consistia principalmente em levar e trazer os carros dos hospedes do garagem do hotel, que ficava na entrada do Túnel Novo, distante do hotel. Por isso, só se levava os carros para a garagem a parir das 11.30 da noite.  Ate la ia acumulando os carros em torno do hotel.  Era comum naquele tempo, os hospedes paulistas viajarem para o Rio de carro, pela Dultra pois fazia a viagem em três ou quatro horas.  Muitos vinham em carros importados e era comum, numa sexta-feira acumular, uma dúzia de Mustangs ou Camargos, alem de outras marcas, para levar na garagem.  Aproveitando então esses carrões, não era incomum "esticar" o caminho ate o posto seis, para depois retornar para o Túnel Novo.  Também não era incomum oferecer carona para as telefonistas que saiem de serviço a meia-noite, principalmente as mais bonitinhas.  Toda essa farra terminou entretanto, na noite que um colega mensageiro, acompanhado de uma telefonista, bateu num cruzamento distante do caminho da garagem.  Ninguém se machucou seriamente, mas foi um escândalo de grandes proporcoes, pois o carro - um Mustang - foi perda total.  Felizmente para mim, neste dia, eu havia trabalhado no turno da manha!

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Governança

Terminado o estagio no setor de Alimentos e Bebidas, chegou a hora de passar para o setor de Apartamentos, começando pela Governanca.  Comecei na Lavanderia, trabalhando como assistente de lavanderia.  Era um serviço duro e pesado.  A lavandaria ficava no sub-solo do hotel, sem ar condicionado, e com uma ventilação deficiente, e a temperatura muitas vezes passava de 45 graus.  Hoje em dia, não seria mais permitido trabalhar em condicoes assim, mas em 1966, era assim mesmo.  Ao todo, passei dois meses na lavanderia, e aprendi a operar as maquinas de lavar e secar, e também de operar a prensa a vapor, que era considerado o equipamento de maior responsabilidade do setor, tanto e que o operador ganhava um pouco mais que os demais.  Da lavanderia passei a trabalhar nos andares como arrumador, trabalhando em conjunto com uma arrumadeira.  Cada dupla era responsável por dois andares (um total de 28 apartamentos).  Novamente, o trabalho era duro e cansativo, mas pelo menos era melhor que a Lavanderia.  A arrumadeira com quem trabalhei era uma senhora portuguesa, e ela não entendia bem o que eu estava fazendo la, arrumando camas e limpando banheiros.  "Você devia estar estudando para ser um advogado ou um engenheiro", ela me disse,   "sim, mas sou um estagiário, estou aprendendo o serviço para depois ser um gerente", eu respondi.  Ela me olhou, desconfiada, e perguntou "E gerente arruma cama, por acaso?"
Ainda passei dois meses trabalhando no escritório da Governanca, observando a forma que tudo era organizado.  A Governanta Executiva, assim como sua assistente, eram alemães, e impunham uma disciplina germânica ao departamento.  Os inventários de roupa eram realizados mensalmente e o controle da roupa, assim como de todos os outros itens operacionais, muito rígido.  Qualquer item de roupa que faltava era descontado dos funcionários, e não havia perdão.  Também não havia perdão se algum funcionário chegasse atrasado para o serviço.  A tolerância para entrar em serviço era de cinco minutos, depois disso era suspensão automática,e o faltoso habitual acabava sendo demitido por justa causa, após acumular vários suspensões.  Ao todo. passei cinco meses na Governanca, e sai de la com uma grande admiração pelo grau de organizacao do setor, e ciente do trabalho árduo de dezenas de pessoas necessárias para manter um hotel funcionando e limpo.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Um Outro Mundo

Após onze meses trabalhando no setor de Alimentos e Bebidas esta parte do estagio estava concluída e eu iria passar para o setor de Governanca.  Antes, porem, tive que escrever um relatório sobre o que eu tinha aprendido ate então, e apresentar sugestões de melhorias para os problemas encontrados.  Não era uma tarefa fácil para quem ainda não havia completado 20 anos de idade, mas, revendo o relatório 45 anos depois, percebo que minha preocupação naquele tempo já estava focado nas pessoas, e não nos processos técnicos, e isso e um traço que me acompanhou a carreira toda.  Embora eu não soubesse na época, os anos `60 representava o fim de uma era para a hotelaria carioca - ate então fortemente associada a tradição clássica europeu - pois foi a ultima década em que boa parte da mão de obra especializada era composta de europeus.  Os maitres que trabalhavam nos restaurantes do Leme Palace eram suicos, alemães, italianos, austríacos, ou franceses, todos muito experientes e com idades superiores a 50 anos.  O Chefe da Cozinha era um suico, o Chefe da Patisseria era um austríaco, e assim por diante.  Como já  mencionei antes, boa parte dos garcons e barmen eram portugueses e espanhóis.  Dez anos depois, esse quadro tinha mudado completamente.  Os antigos maitres já estavam aposentados.  Os portugueses e espanhóis haviam se tornado donos de bares e restaurantes, e não vinha mais mão de obra da Europa para substituir-los.  Foi necessário então buscar a mão de obra necessária no mercado interno.  Não foi uma transição fácil, e a qualidade dos serviços oferecidos nos hotéis inicialmente caiu muito.  Contribuiu para isso a grande demanda de nova mão de obra por causa da rápida expansão do parque hoteleiro carioca durante a década de `70, com a construção do Intercontinental, do Sheraton, do Caesar Park, do Rio Palace, o Rio Othon, e do Meridien, todos inaugurados entre 1974 e 1979, sem esquecer o Hotel Nacional, inaugurado em 1970.  Alem disso, os novos hoteis trouxeram uma nova filosofia de administracao hoteleira, mais focado no estilo americano, onde a administracao dos custos e a busca de resultados economicos predominava. 
Sempre acho que tive sorte na minha vida, e na minha carreira, e muitas vezes eu estava no lugar certo na hora certa.  Ao completar meu estagio em Alimentos e Bebidas num hotel bem sucedido, e repleto de bons e experientes profissionais europeus, adquiri, sem perceber, uma formação clássica de serviço europeu, sem sair do Brasil, ao mesmo tempo que o convívio intimo que tive com os escalões mais baixas da hierarquia me deu um conhecimento e um respeito para os mais humildes que me serviria muito nos anos futuros.  Era mais um exemplo de estar no lugar certo na hora certa!

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Claudia Cardinale

         Passado a experiência na cozinha, a próxima etapa do meu estagio em Alimentos e Bebidas foi trabalhando no restaurante como commis, e mais tarde como garcon.  Nesta época tive muitas experiências variadas pois trabalhei em todos os setores, e em todos os horários, incluindo de madrugada.  Pela primeira vez, o trabalho me colocava em contato direto com os hospedes,  que foi uma experiência interessante,  e logo descobrir que abria também a possibilidade de  ganhar boas gorjetas!   Na época,  o hotel hospedava muitos grupos de turistas americanos,  geralmente idosos aposentados, que faziam um tour sul-americano, passando por vários países.  Havia um predominancia de Senhoras nestes grupos, muitas das quais viúvas,  e que invariavelmente ficavam encantadas com a qualidade do inglês do jovem garcon que as atendiam no café da manha..  “Onde e que você aprendeu a falar inglês tão bem”?, perguntavam, “Na escola, Madame”, eu respondia,  um pouco sem graça, mas já sabendo que a gorjeta seria boa!  Foi nesta época que encontrei pela primeira vez com “celebridades”.  Me lembro de uma festa no hotel promovido pela gravadora Phillips, por ocasião da assinatura de um contrato com Elis Regina, mas memorável mesmo para mim foi a estadia da jovem e bonita atriz italiana Cláudia Cardinale, atracao principal do Festival de Cinema que se realizava na cidade.  Na época eu trabalhava como Garcon de Room Service, atendendo no período da manha, o mais movimentado por causa do serviço de café da manha.  A maioria dos hospedes, naquele tempo, tomavam café da manha nos apartamentos. Naquela época, o Leme Palace tinha oito copas nos andares, cada um atendendo apenas dois andares, e havia um garcon por andar, para atender apenas 14 apartamentos.  O serviço era muito mais sofisticado do que e hoje.  Naquele tempo, o garcon entrava no apartamento com um carrinho de serviço, montava todo o serviço na mesa do apartamento, e se retirava em seguida.  Meia hora depois, voltava ao apartamento para recolher os pratos sujos. Por  sorte, aconteceu que a Cláudia Cardinale ficou hospedado no andar  que eu atendia, e durante vários dias, tive o prazer de servir o café da Cláudia Cardinale dentro do seu apartamento,  para grande inveja dos meus amigos do Leblon.   A maioria dos meus colegas entre os garcons e barmen do Leme Palace neste tempo eram de origem portuguesa e espanhola.  Chegava a ser impressionante a quantidade deles.  Eles me tratavam muito bem e aprendi muito com eles.  Eram espertos, e ambiciosos,  e vários deles viraram donos de bares e restaurantes, sendo alguns muito bem sucedidos.  Tinham todos uma caracteristica de extrema dedicação ao trabalho, e não me surpreende que tantos foram tão bem sucedidos.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Cozinha

          Meu primeiro real avanço na carreira aconteceu algumas semanas após esta trabalhando na cozinha.  Um dia, o Chefe de Cozinha me chamou, e disse, “A partir de hoje você não fará mais serviço dos peões, você fará o serviço dos assistentes, e a partir de hoje você fará suas refeicoes na mesa do Chefe, junto com os demais cozinheiros” Era um “upgrade” enorme.  Primeiro, o servico era bem mais interessante, já que trabalhava ajudando diretamente os principais cozinheiros, e aprendia com eles, e depois a hora da refeição passou a ser um grande prazer.  Alem de comida excelente preparada na hora, ainda ouvia as muitas historias contadas  pelos mais velhos.  O Chefe de Cozinha comandava a mesa, e como em tudo que se passava na cozinha, era  o dono absoluto dos acontecimentos.  Tinha um domínio total de todos os aspectos da cozinha, e, como muitos chefes, um pavio curto e ai de quem ousava contrariar-lo.  Ninguém ousava entrar na cozinha, sem primeiro pedir permissão ao Chefe, nem o Gerente Geral, nem o Gerente de Alimentos e Bebidas, nem ninguém.  Os Maitres eram vistos como os “inimigos” pelo pessoal da cozinha.  Eram eles que tiravam as “comandas” que continham os pedidos dos clientes, cada qual com suas preferências particulares, que tinha que constar claramente, senão o pedido saia incorretamente, gerando reclamacoes dos clientes, devolução do prato ao cozinha, e outras mazelas.  Quando isso ocorria era um “deus nos acude” na cozinha.  O Chefe se enfurecia, xingava os pobres commis e garcons que apenas conduziam os pratos de volta a cozinha, enquanto os Maitres observava a uma distancia salutar.  Na época eu ainda estava num processo de aprendizado na língua portuguesa, e meu vocabulário era diariamente enriquecido por um torrente de palavrões novos.  Me lembro que, na época, mal conseguia completar uma frase completa em português que não continha pelo menos um palavrão.
Foi também nesta época que aprendi uma lição de ouro, que aplico ate hoje.  Nunca, mas nunca mesmo, em nenhuma circumstancia, devolve um prato a cozinha mas ser refeito , a não ser que você mesmo vai junto com o prato!

         Ao todo passei um total de seis meses na cozinha.  Foi uma experiência enriquecedora, em todos os sentidos.  Trabalhei em todos os horários, e em todos os se tores.  Aprendi muita coisa, e cheguei a trabalhar junto com o Chefe na “boquette” ajudando a cantar as comandas, distribuir as tarefas entre os cozinheiros, e soltar os pedidos, verificando que cada um seguia  com seu acompanhamento correto. Cheguei a ser responsável pela copa geral durante o serviço de café da manha, numa época que havia muitos pedidos de omeletes, ovos com presunto, waffles, etc. etc.  Isto era numa época que todo o serviço era a la carte.  Não havia surgido ainda os “buffets”  e serviço “self-service” de hoje. Tudo era feito e servido na hora.  Quando trabalhava na Copa entrava em serviço as 5.30 da manha. Saia de casa no Leblon as 4.30 e pegava um ónibus ate Princesa Isabel, e fazia o resto do percurso a pé, porque o Gávea-Leme não funcionava neste horário.  Nesta época, nunca cheguei atrasado, e nunca faltei.  Aprendi a ter orgulho no que fazia, e aprendi a importância de fazer parte de uma equipe, que não podia falhar!  E aprendi que, sem apoio da equipe, ninguém podia funcionar bem.  Apesar de ter gostado muito da experiência na cozinha, nunca quis ser um grande Chefe.  Não acho que tinha talento suficiente para isso, mas o que aprendi foi o suficiente para entender como tudo funcionava, respeitar a participação de cada um, e principalmente, adquirir uma enorme admiração pelos Chefes de Cozinha, esses sim, verdadeiros heróis na estrutura de qualquer hotel de sucesso.

O Cartão de Ponto

          Todo dia quando chegava ao trabalho tinha que bater o cartão de ponto.  Batia também no intervalo de almoço e novamente a saída quando ia para casa.  Depois de seis dias de trabalho, Walter me perguntou “Que dia você vai folgar?”  “Nao sei”, respondi, no meu cartão  não havia nenhum espaço carimbado  com a palavra FOLGA, como dos outros.  “Todo mundo tem direito a uma folga semanal”, me disse Walter,  “Ja que você trabalhou seis dias, amanha deve ser sua folga”.  Otimo, pensei, seria um Domingo, bom para curtir o dia na praia, e assim, no sétimo dia, não fui trabalhar.  Quando cheguei na segunda-feira para trabalhar, meu cartão não se encontrava no quadro.  “Voce não poderá entrar no service” decretou o severo Porteiro de Serviço, “Tera que aguardar a chegada do Chefe de Pessoal”.  Fiquei aguardando e finalmente fui chamada a sala do Chefe de Pessoal.  “Por que você não veio trabalhar ontem” ele perguntou.  “Por que era minha folga, eu já havia trabalhado seis dias e o sétimo seria minha folga”  “Seu cartão estava carimbada FOLGA, por acaso”? “Nao senhor”, respondi, “ mas nenhum dia do mês estava carimbada com FOLGA”  “Se o seu cartão não esta carimbada FOLGA, você não pode folgar.  Você devia ter trazido seu cartão para o Departamento de Pessoal para ser carimbado, antes de folgar.  Isto e uma falta grave.  Desta vez, vou lhe perdoar, mas na próxima vez recebera uma carta de advertencia”, e assim me liberou para trabalhar, mas não sem antes carimbar meu cartão de ponto todos os Domingos do mês com a bela palavra FOLGA.
         O privilegio de folgar somente aos Domingos durou pouco.  Não demorou muito para que o carrasco do Gerente Geral notar o fato, e ai ele chamou o Chefe de Pessoal e perguntou “Porque o Philip só esta folgando aos Domingos”?  “Porque ele e estagiário, e não esta na escala normal de trabalho da cozinha, por isso eu achei que não faria diferenca”  “Errado”, disse o Gerente Geral, “Philip não deve ter qualquer tipo de privilegio em relação aos demais funcionários.  A partir de agora, ele deve folgar durante a semana, e terá apenas uma folga dominical  por mês, exatamente como os demais funcionários.”   E assim foi feito, e a partir dali passei a folgar todas as quintas-feiras, com um folga dominical por mês.  Na semana da folga dominical, perdia a folga de quinta-feira, exatamente como acontecia com os demais funcionários.
           Esse tratamento sem distinção com os níveis mais baixos da hierarquia, dispensado a mim, se manifestava de vários formas.  Primeiro, pelo uniforme, que logo distinguia quem era quem na hierarquia interna do hotel, e da própria cozinha, e depois pela própria remuneração, que no caso de Peão de Cozinha se limitava a um salário mínimo e mais meio ponto na distribuição da taxa de serviço.  Havia também a rígida disciplina, aplicada em casos de faltas, por menores que fossem.  Isto começava pelo exigência de cumprir rigorosamente o horário de trabalho.  Um atraso superior a cinco minutes implicava na suspensão imediata.  O funcionário simplesmente não poderia entrar em service, perdia o dia de trabalho, a folga remunerada, e ainda levava uma carta de advertência.  Faltas injustificadas ao trabalho eram faltas graves, e faltas por doença, só com atestado da SAMDU, precursora na época da atual INSS.  Havia ainda um outro fato.  Naquele tempo, existia no Leme Palace, quatro vestiários masculinos diferentes, que atendiam basicamente aos  diferentes níveis hierárquicos do hotel. Havia o vestiário dos chefes e encarregados, outro para os recepcionistas e maitres, outro para os garcons e mensageiros, e finalmente outro para os serventes e peões de cozinha.  Era o menor, mais acanhado, e mais densamente ocupado vestiário, e era apelido pejorativamente pelos demais funcionários como “A Favela”.  E era la, na “favela”  que meu armário estava localizado.
           Com tudo isso, não demorou muito tempo para meus colegas – subalternas como eu – passaram a me aceitar como um igual.  Embora eu morasse com meus pais e irmãos num apartamento da classe media no Leblon, e meus colegas morava ou em favelas verdadeiras ou em longuinios surburbios cariocas, quando entravamos em service, passamos a ser iguais, sofrendo as mesmas durezas e muitas vezes as mesmas injustiças.  Com isso, passei a estabelecer verdadeiras amizades, e cumplicidades.  Aprendi as diversas “malandragens” que ajudavam a suavizar o rigor da disciplina implacável, e passei a nutrir um saudável desconfiança em relação a todo e qualquer chefia.  Com meus colegas de trabalho, passei a frequentar lugares raramente frequentados na época por jovens da zona sul, como a Praça Maua, Lapa, e a rua Mem de Sá, onde jogávamos  sinuca.  Joguei futebol em Jacarezinho, e frequentei bailes em Mesquita.  Andava nos trens da Central, e frequentava o geral do Maracana.  Sempre fui um flamenguista fanático, e isso também me ajudou muito. Eu era do povo, e me sentia bem.

Day One

       Iniciei minha carreira hoteleira em  01.03.1965, era uma segunda-feira de Carnaval e, coincidentemente, a cidade do Rio de Janeiro celebrava neste exato dia, seu quatrocentenario. E não era feriado porque naquele tempo feriado no Carnaval era só na terça-feira, e quarta-feira ate meio-dia.  Eu era estagiário, e ia começar na cozinha do Leme Palace.  Mandaram chegar as 7 horas da manha, que era o horário do pessoal da cozinha, mas tive que esperar ate as 8 horas para chegar o Chefe de Pessoal, entregar a carteira de trabalho, fazer o registro de funcionário, receber o uniforme, armário etc e só la pelas 9.30 cheguei na cozinha propriamente dito.  O Chefe estava de folga neste dia e o sub-chefe, sem ter muitas informacoes sobre minha chegada, mas sendo informado que eu começaria como Peão de Cozinha me passou uma faca e me encaminhou para um balcão, sobre o qual havia um monte de carne  para limpar.  Designou um outro Peão , chamado Walter, para mostrar  como fazia e ai fiquei sozinho num canto da cozinha.  As 10.30hrs Walter voltou  e me disse “pode parar porque e a hora do almoco”.  Nunca antes eu havia almoçado tão cedo, mas segui os outros peões e peguei um prato de sopa e me servi de um espécie de ensopado que era o almoço dos peões.  Não havia cadeira ou banco para sentar, e o jeito era sentar num engradado de bebida , e pronto.  Os Sub-chefes e demais cozinheiros comia juntos numa mesa no meio da cozinha, mas os ajudantes e peões tinham que se virar de outra forma. Na hora que apanhava o engradado debaixo de uma pia, saiu correndo um enorme barata, desaparecendo dentro de um ralo.  Comecei a comer e pensei “o que e que estou fazendo aqui”.  Os outros peões guardavam uma certa distancia de mim e me olhavam com uma certa ar de desconfiança.  Afinal de contas, tratava-se de um gringo louro de olhos azuis, falando um português enrolado, e bem diferente dos demais peões.  Foi nesta hora que pensei de ir embora, de simplesmente sumir de la e nunca mais voltar.  Seria tão fácil, bastava sair andando pelas escadas, trocar de roupa no vestiário, passar pela portaria de serviço e pegar o “Gavea-Leme” ate chegar na minha casa em Leblon.  Bem mais simples do que “escapar” do colégio interno na Inglaterra, onde tinha estudado por quatro anos, aquilo sim um verdadeiro prisão.  Mas, acabei ficando.  Não sei se faltou coragem para sair, ou se simplesmente não queria causar uma grande decepção para meus pais abandonando meu primeiro dia de trabalho depois de poucas horas.  Bem, o fato e que fiquei, e dali em diante, pouco a pouco, as coisas começaram a melhorar.  Na parte da tarde me passaram para um serviço mais agradável, descascar batatas, tarefa  facilitada pela existência da maquina de descascar.  Fiz mais alguns serviços naquele dia, inclusive de limpeza.  As 15 horas chegou a turma da tarde para assumir o serviço e finalmente as 16 horas chegou a hora de ir para casa.  Desci para o vestiário, tomei banho, troquei de roupa, e peguei o lotação para casa.  Cheguei em casa  exausto, pois havia passado quase o dia todo em pé, e na porta encontrei minha mãe, ansiosa,  que perguntou , “E ai, como foi seu primeiro dia de trabalho”  “Nada de especial”, respondi,  sem dar muitos detalhes, e fui para meu quarto dormir.